INÚTIL CANÇAO
Dedilhando a lira,
ela emite arpejos
para quem partira
com os seus desejos.
Algo tão tristonho,
que jamais se ouvira
nem sequer em sonho.
No primeiro acorde,
tudo que a aturde,
antes sem alarde,
arde agora em dor.
Sem qualquer rancor,
urde a conclusão:
já é muito tarde,
mesmo pra canção,
seja ela qual for.
NOEL TROPICAL
Enfeitarei com bolas de bexiga meu pé de angico
plantado lá no fundo do quintal.
Não virá, neste Natal, Noel, aquele tal:
gordo, patusco, bem nutrido.
O que há de vir é nanico, endividado, sofrido,
sem gorro na cabeça chata,
de bermuda, camiseta e alpercata.
Em vez da alva barba, a boca em caco
e um balaio, não o saco.
Haverá Sol em lugar da neve de algodão
e os sinos não badalarão neste Natal:
os sons serão de berimbau!
Nada de castanhas, nozes, avelãs e vinho de outro cais,
apenas aguardente e frutos tropicais.
Vejam só: Noel virá de jegue, não de trenó.
Até nem será Noel quem virá neste Natal,
mas Severino e Ribamar e Juvenal e Zé,
que hão de dispensar a sorrateira chaminé.
Poema da manhã sem tarde
Em tudo a impermanência:
nos amores contingenciais,
na vida efêmera das flores.
Em tudo a ausência do constante,
quando até o instante se transforma
naquilo que já não é.
Nada se abriga sob teto consistente,
nada se obriga,
nada se pauta no amanhã.
Vive-se o presente da manhã sem tarde:
tudo urge, tudo arde, tudo se desfaz
na crepitante fogueira do fugaz.
Viagens
Não me lamento sendo assim:
pleno de raízes.
Nem por abrigar em mim
a timidez dos aprendizes.
Admiro aquele que não tem amarras,
o que se deixa ir, levado pelo vento,
o que navega bem além das barras.
Gosto daquele que se lança de uma vez,
peito aberto,
liberto do quem sabe e do talvez.
Sou assim, porém:
não vou além do meu limite.
Talvez em mim habite
alguém capaz de voar sem asa,
de caminhar sem apressar o passo,
de encontrar na própria casa
o seu mar, o seu caminho, o seu espaço.